A anistia, em sua essência, é um instrumento político e jurídico decisivo em situações de transição democrática ou pós-conflitos. Quando aplicada com justiça, pode reparar injustiças históricas, permitir reconciliação e fortalecer a Democracia. Quando utilizada para acobertar crimes, torna-se um mecanismo de impunidade que perpetua desigualdades e enfraquece o Estado de Direito. A questão, portanto, não é apenas o que significa anistia, mas para quem ela deve ser concedida e por quê.
Ao longo da história, ditaduras comandadas por tiranos como Hitler, Mussolini, Franco, Pinochet, Costa e Silva, Médici, Geisel e Figueiredo perseguiram brutalmente jornalistas, professores, líderes sindicais, jornalistas, ativistas e minorias étnicas. Esses grupos, por representarem vozes dissidentes e identidades marginalizadas, foram alvos de censura, prisões, torturas e execuções. A repressão não se limitava ao silenciamento individual: ela visava erradicar ideias e culturas que desafiavam a ordem estabelecida, criando um ambiente de medo e conformismo.
Contra essas ditaduras, muitos resistiram, pagando com a própria vida. Condenações arbitrárias, prisões, torturas, assassinatos e exílio forçado marcaram a trajetória daqueles que ousaram lutar pela liberdade. Paradoxalmente, a história frequentemente os tratou como criminosos, enquanto os verdadeiros algozes permaneceram impunes. A luta pela anistia, nesses casos, tornou-se não apenas uma questão de justiça individual, mas uma necessidade para restaurar a dignidade coletiva e resgatar a verdade histórica.
No Brasil, esse embate se tornou emblemático durante a ditadura civil-militar (1964-1985). Movimentos sociais, familiares de presos políticos e exilados exigiram um perdão amplo para aqueles que foram perseguidos pelo regime. A anistia era vista como um o essencial para a redemocratização, um gesto que permitiria aos resistentes retomarem suas vidas e reintegrarem-se à sociedade. Contudo, o que se viu foi um processo distorcido: a anistia não apenas protegeu as vítimas, mas, principalmente, os carrascos.
A Lei da Anistia de 1979, aprovada sob forte influência militar, garantiu que os torturadores e agentes de repressão do Estado, responsáveis por execuções e desaparecimentos políticos, jamais fossem punidos. Essa anistia estabeleceu uma falsa equivalência entre opressores e oprimidos, como se a luta pela democracia pudesse ser equiparada à repressão sanguinária da ditadura.
A impunidade não ficou restrita ao ado. As forças armadas e as polícias herdaram desse período métodos violentos de repressão e um caráter autoritário que ainda se manifesta na violência policial, nas chacinas em periferias e no desrespeito sistemático aos direitos humanos.
A ausência de responsabilização permitiu que discursos autoritários continuassem circulando livremente, preparando o terreno para novas investidas contra a Democracia.
A criação da Comissão Nacional da Verdade (CNV), em 2012, durante o governo de Dilma Rousseff – ela mesma presa e torturada durante a ditadura –, representou um esforço tardio, mas essencial, para resgatar a memória das vítimas e documentar as violações cometidas pelo regime. No entanto, sob pressão de um Congresso que compactua com violências históricas e pesada interferência das Forças Armadas, os responsáveis pelas atrocidades cometidas seguem livres, reforçando a mensagem de que crimes cometidos pelo Estado fardado podem ficar impunes.
O perigo desse precedente ficou evidente nos últimos anos. O ataque ao Capitólio, nos EUA, em 2021, e a tentativa de golpe no Brasil, com a invasão e vandalização da Praça dos Três Poderes, em 8 de janeiro de 2023, mostraram que grupos extremistas seguem dispostos a destruir as instituições democráticas quando seus interesses são contrariados. Em ambos os casos, os responsáveis buscaram anistia sob a justificativa de perseguição política, ignorando que seus atos foram atentados diretos contra a Democracia.
É uma contradição muito clara que aqueles que exaltam torturadores, defendem a violência militar e atacam a Democracia agora clamem por anistia. O ex-presidente Jair Bolsonaro, que repetidamente fez apologia à ditadura militar e incentivou discursos golpistas, busca proteção legal para si e seus aliados.
A história se repete: aqueles que mais se opõem ao perdão reivindicam o direito de serem perdoados quando a justiça bate à porta.
Evidente que qualquer punição abusiva, julgamento sem direito a ampla defesa ou decisão que não esteja respaldada pela Lei deve ser questionada e combatida, mas em hipótese alguma isso pode minimizar a responsabilidade de pessoas adultas que, voluntariamente, vandalizaram o patrimônio público em Brasília na tentativa de desencadear um golpe de Estado contra o nação brasileira. Incentivadores, patrocinadores, articuladores, divulgadores e cúmplices dos crimes são também, nas devidas proporções, criminosos.
Isso não significa que a anistia deva ser descartada como princípio. Em casos de perseguição política e violação de direitos humanos, pode ser um instrumento vital para garantir a sobrevivência de dissidentes. No entanto, há uma diferença fundamental entre proteger ativistas que lutam por Democracia e absolver aqueles que trabalham para destruí-la. Usar a anistia como escudo para criminosos que tentam abolir o Estado de Direito é inverter sua lógica original, transformando um mecanismo de justiça em ferramenta de impunidade.
Conceder anistia a quem atenta contra a Democracia é abrir um precedente perigoso: se tentativas de golpe não forem punidas, outros golpistas saberão que podem agir sem medo de represálias.
Disfarçar ataques à Democracia como “liberdade de expressão” ou “legítima manifestação política” é permitir que a violência e o autoritarismo se fortaleçam dentro do próprio regime democrático. Uma sociedade que normaliza o perdão ir corre o risco de assistir à sua própria destruição.
A memória histórica é um dos pilares da Democracia. Ditaduras, violações aos direitos humanos e ataques às instituições democráticas não podem ser naturalizados: para que não se esqueça, para que nunca mais aconteça. No Brasil, é fundamental que crimes cometidos contra a Democracia sejam enfrentados com rigor, garantindo que as futuras gerações vivam sob um Estado que não apenas defende a liberdade, mas também pune, na forma da Lei, aqueles que tentam destruí-la. A anistia, afinal, deve ser um instrumento de justiça, não um salvo-conduto para golpistas.
Luis Felipe Valle é professor universitário, geógrafo, mestre em Linguagens, Mídia e Arte, doutorando em Psicologia.