Somos animais, temos toda a caracterização deles, mas distinguidos da maioria porque temos a noção razoável de que pensamos, escolhemos e decidimos.
Reconhecidos como animais racionais, nós devemos diuturnamente estudar e conhecer profundamente os não racionais. Precisamos nos identificar com os atributos comuns, bem como compararmos as distinções, fruindo insistentemente de nossas qualidades exclusivas. Vez por outra, seria importantíssimo que pudéssemos imitá-los em condutas que só eles são capazes de oferecer, principalmente na interação conosco. O carinho protetor que um cachorro dedica ao bebê da casa é mesmo comovente.
Somos primatas, com mais de 99% de semelhança genética com os chimpanzés e bonobos. A diferença é suficiente para nos garantir destreza cognitiva, inteligências elaboradas, exercícios mentais, artísticos, com explicações, imaginações e intepretações infinitas.
Os primatas, comparados com os outros mamíferos, apresentam cérebros maiores, com detrimento do olfato e maior acurácia da visão, com estereopsia. Esta visão estéreo possibilita a sensação tridimensional. E os humanos podemos expandir ou encurtar mentalmente as referências das três dimensões.
Frans de Waal, primatologista e etólogo holandês, indica que os humanos têm heranças sentimentais e comportamentais de dois símios: as tendências territoriais e agressivas dos chimpanzés, às vezes úteis para nossa proteção, outras vezes perigosas pela belicosidade, e uma ótima habilidade de resolver conflitos e cooperar com os outros, características dos bonobos.
O conjunto de fatores corporais e emocionais implicados na vida dos mamíferos é extremamente complexo e demanda ainda muitos estudos e conhecimentos detalhados. Para ar nosso recado aqui, vamos comentar essas dinâmicas de modo simplista.
Todos os animais necessitam do medo para sobreviver. É o que os estimula a buscar comida ou a defender seu território. É fácil observar isto em um bicho selvagem. Ele permanece em seu canto, até que um medo o desloca dali. O mais comum é o medo de morrer que aproveita a fome e o transfigura em predador. O outro é o de perder seu território, que o transfigura em guerreiro.
Os medos, portanto, são vivenciados nos momentos de fraqueza, de vacilação, quando impulsionam o animal à luta. É um medo útil, hormonal, adrenérgico, bem “vital”, um “eustresse” (estresse bom, capaz de promover resiliência), necessário para enfrentar o desafio. Porém, se o medo for se exacerbando, o desafio vai se tornando insuperável, e o animal desiste, se entrega.
Safia Debar, médica de Londres, aponta essas diferenças entre o “good stress”, bom estresse (eustresse) e o “bad stress”, mau estresse (disestresse).
Assim como os animais menos evoluídos, nós, humanos, também só atacamos quando estamos fracos, sempre mobilizados por um medo.
Com nosso cérebro mais desenvolvido, mais “mental”, nós sofisticamos os medos. Damos a eles nomes mais elaborados, às vezes até com formas sutis de eufemismo.
Assim, como exemplos, chamamos de:
ciúmes – o medo de ser superado pelo rival;
inveja – o medo que de não conseguir o sucesso do outro;
culpa – o medo de ser castigado por um “pecado”.
Quando enfraquecidos pelos medos, tentamos parecer fortes, corajosos, às vezes belicosos e agressivos. Temos a falsa impressão de que o corajoso nada teme. A rigor, se ele não se acovardou, está enfrentando a dificuldade ou o inimigo. E consegue isso não por destemor, mas por istrar o medo.
O mercado tenta aproveitar nossos incontáveis temores e nos vende proteção. Seguros, garantias, promessas de coberturas financeiras ou outras diante de dramas, catástrofes, incêndios e afins.
À busca da maior segurança possível, alternamos tópicos de evolução e retrocesso imitativo. Imaginamos blindagens que simulam couraças, disfarces que equivalem ao mimetismo e criamos sistemas tecnológicos de “última geração” que, a rigor, em poucos meses, já será da “penúltima”…
Precisamos encarar que somos seres muito medrosos. E manipuláveis por esses medos. Encarar, estudar e debater criticamente nossos temores exigiria começar pelo maior deles, o principal: o medo da morte.
Nós temos o conforto da religião. A fé religiosa nos salva da morte. Por este ângulo, ficaríamos acomodados, animal na toca sem invasores, em uma monovisão, sem especulação estereoscópica.
Se avançarmos para outras dimensões, teríamos que lidar com o falecimento completo, morte de corpo e alma, uma circunstância apavorante, mas que nos permitiria uma nova e corajosa resiliência, um eustresse interessante e essencialmente humano.
Precisamos de coragem compatível com o início e a sequência desse ousado projeto.
Joaquim Z. Motta é psiquiatra, sexólogo e escritor.