Recentemente a repercussão da série Adolescência tomou conta das redes sociais e dos noticiários. Discussões densas e representativas de nossos tempos nos fizeram encarar o desafio imenso que é a criação de crianças e adolescentes no mundo digital.
Mas hoje eu quero falar de outra série, também disponibilizada pela mesma plataforma de streaming, chamada Má Influência: o lado sombrio dos influencers infantis. A série retrata um caso real, de um grupo de adolescentes que foram explorados para a produção de conteúdo para o YouTube. A série parte da história de Piper Rockelle, uma influencermirim relevante nos EUA, que se vê presa em uma vida televisionada por sua mãe e o namorado dela, para exposição em redes sociais.
Mas a exploração não se basta com a filha. Tiffany Smit, mãe de Piper, percebe que o algoritmo do YouTube entrega muito mais os vídeos da filha quando eles transmitem uma interação de grupo de adolescentes. Com isso, ela convence outras crianças e jovens a frequentarem sua casa (uma delas a a morar lá) para que possam gravar vídeos o dia todo em rotinas exaustivas de produção de conteúdo muito dirigido e pretensamente espontâneo.
O sucesso dos vídeos é muito impressionante e o conteúdo produzido alimenta prioritariamente o canal de Piper Rockelle, mas também gera engajamento nos canais dos outros participantes, trazendo uma impressão de que havia ali uma dinâmica de troca e colaboração. Os canais são monetizados e istrados pelos responsáveis e, acreditem, estamos falando de centenas de milhares de dólares por mês pagos pelo YouTube, além de eventuais publicidades e eventos no mundo real.
O desenrolar da série, contudo, vai nos mostrar questões gravíssimas dessa modalidade de exploração infantil. Para começar, apesar de serem canais de jovens e ter conteúdo que aparentemente atrai pessoas da mesma idade, a audiência do conteúdo é majoritariamente composta por homens adultos.
Além disso, vamos descobrir que o que parece a gravação despretensiosa de cenas cotidianas vivenciadas por adolescentes, na verdade, são vídeos cujos temas são pensados e que demandaram horas incansáveis de gravação. Se já não bastasse, os vídeos tinham conteúdo de conotação sexual, mas sempre de forma camuflada, o que faz disso ainda mais perverso. Sob o tema de “crush” os vídeos traziam muitas cenas de insinuação sexual. Todo esse pesadelo protagonizado por crianças na entrada da puberdade.
Para além do absurdo do conteúdo, o grupo não é baseado em colaboração ou troca. Há uma exploração centralizada nas mãos da mãe de Piper e quando as outras crianças decidem romper com o esquema viram alvo de ódio descontrolado na internet e impedimentos de continuarem suas carreiras de maneira independente.
Se isso já não fosse o suficiente para refletirmos sobre os impactos da produção de conteúdo para a internet em que crianças são os produtos, uma coisa chama muito a atenção na série: a participação ativa de mães na exploração financeira de seus filhos. Não pense que aqui vou julgar exclusivamente essas mães. Não é bem isso.
Como advogada de família, meu reparo logo se fixou em uma questão recorrente na série: a ausência paterna e a falta de contribuição financeira dos pais para o sustento dos filhos. Nem de longe quero diminuir a gravidade do comportamento desajustado e abusivo de Tiffany Smit, mas desde o início é possível perceber que sua maternidade solo a colocou na situação de ter que ser inventiva para criar a filha e sustentá-la sozinha. A situação se repete na mãe que leva a filha para viver com elas.
Onde estavam os pais e a sua contribuição financeira quando esse pesadelo se descortinava? Onde estava a sua influência positiva, onde estava a rede de apoio?
Quando se diz que é preciso uma aldeia para criar uma criança há muitas conclusões que se pode tirar dessa máxima. E uma delas é a de que a responsabilidade compartilhada é uma proteção da criança.
O isolamento de mães solo, o abandono paterno e a ausência de perspectiva não podem justificar o horror que vemos na série Má Influência. Até porque há casais que exploram seus filhos, como o caso célebre aqui no Brasil que deu lugar ao Projeto de Lei 3916/2023, conhecido como projeto de lei Larissa Manoela.
O que quero chamar a atenção é que o combate da transformação de crianças em produtos é um desafio social e temos todos que nos posicionar, começando por não consumir este tipo de conteúdo.
Mas também lembrar que existe um compromisso que é da família, de mães e pais, que somente será realizado por uma noção contemporânea de parentalidade compartilhada e responsável, em que ambos decidam, com afinco, exercer a melhor influência possível na criação de seus filhos.
Laura Brito é advogada especialista em Direito de Família e das Sucessões, possui doutorado e mestrado pela USP e atua como professora em cursos de Pós-Graduação, além de ser palestrante, pesquisadora e autora de livros e artigos na área.