Em 2006, a festejada atriz Maria Alice Vergueiro [falecida anos depois – em 2020, aos 85 anos] foi a protagonista de um vídeo [“Tapa na Pantera” – direção Esmir Filho, Mariana Bastos e Rafael Gomes] no qual interpretava uma fumante contumaz de Cannabis/maconha. A personagem, que se chamava Maria Alice, dizia fazer uso da planta que contém o psicoativo THC [por meio de um cachimbo] havia “trinta anos, todos os dias”, “não se considerava viciada, vivia rindo”; malgrado apresentasse lapsos de memória em situações corriqueiras do dia-a-dia. Quando se referia ao uso do fumígeno, vinha o bordão: “vou dar um tapa na pantera”.
Somado ao talento de uma de nossas damas do teatro, cinema e TV, o vídeo teve milhões de visualizações – já nos primórdios da Internet brasileira. Fazer piada [discutível, convenhamos…] com o uso dito “recreativo” de substância psicoativa [droga] nunca foi novidade. Discutível porque, quando se está diante de droga [lícita ou ilícita] que causa, além de dependência, diversos males à saúde física ou mental, a postura mais correta do ponto de vista da prevenção [e da reinserção social] seria preservar vidas, ganhar o bem-estar integral e duradouro, sem se importar em perder a “piada pronta” de um fugaz momento.
A dependência química é uma doença “biopsíquica-social”, multifatorial, desencadeada pela epigenética, tão complexa e sistêmica quanto o câncer. E quem faz gracejo ou “meme” com um paciente que está em tratamento de câncer – seja com o que acabou de receber o diagnóstico, seja com o que está em estágio terminal?
Embora nos tempos da igualmente talentosa Inezita Barroso, uma substância hoje considerada tão carcinogênica quanto os produtos de tabaco/nicotina, associada a uma infinidade de comportamentos de risco, de violência [inclusive contra a mulher, crianças e adolescentes], à Síndrome Alcoólica Fetal (S.A.F.), fosse apenas a “marvada pinga” da moda de viola. O fato é que a garotada dos dias atuais “não sabe mais o que é isqueiro ou cinzeiro”, graças a uma das maiores e bem estruturadas políticas de prevenção aos fumígenos – faz pelo menos vinte anos – após a adesão do Brasil à CQCT [Convenção Quadro de Controle do Tabaco], com a subsequente edição da Lei 9.294/96.
Parêntesis sempre necessário: a meninada não quer saber do cigarro “que fede”; entretanto, inicia o consumo de álcool no Ensino Fundamental. Porque a bebida alcoólica, ao contrário do cigarro, propagandeia-se mais que água mineral. “De acordo com a Pesquisa Nacional de Saúde do Escolar (PeNSE) 2019, divulgada em setembro (2021) pelo IBGE: 63,3% dos estudantes entre 13 e 17 anos já haviam experimentado bebidas alcoólicas. (…) O levantamento, feito com alunos de escolas públicas e privadas, mostrava ainda que 34,6% beberam antes dos 14 anos, e que as meninas eram as mais expostas ao álcool precocemente: 36,8% contra 32,3% dos meninos.” [1]
Ninguém desejaria o retrocesso – a se permitir que se fumasse da sala de aula aos hospitais, dos ônibus aos aviões, dos escritórios privados às repartições públicas em geral, dos comércios de rua aos centros de compra, etc… Será mesmo?
Seríamos todos unanimidade no óbvio que protege incontáveis vidas [desde a concepção – vez que a exemplo da S.A.F., há síndromes fetais outras em razão do uso de qualquer droga pela gestante] por vivermos em uma geração cada vez menos sem fumaça de tabaco ou qualquer outro fumígeno? Infelizmente a resposta é tão negativa quanto alarmante. A mesma garotada que sempre foi a “alma do negócio” das dependências, sofre hoje um duplo assédio e implacável da “velha” indústria da necronicotina – que aparece agora com um irmão mais novo – que usa cor, cheiro e sabores, para fisgar ou renovar um perdido estoque de consumidores.
O cigarro eletrônico/narguilé eletrônico/”vape”/”pod” vem a ser a tábua de salvação para uma cadeia de produção altamente danosa ao meio ambiente, aos seus obreiros [desde os agricultores familiares do tabaco]; e é claro aos desprotegidos e/ou incautos “clientes”.
Não se conhece, depois dos anos em que a perversidade humana desceu aos abismos mais tenebrosos – com os genocídios do século ado motivados por inúmeras guerras – uma máquina de fazer pulmões sangrarem ou colapsarem aos milhões todos os anos.
O que soaria elementar a qualquer civilização que estivesse na escolinha maternal da ética, salvaguardar suas crias, parece que não é tão simples assim. Quando permitimos a tarefa de educar presentes e futuras gerações a uma besta de várias cabeças – devastadora da “ecologia cerebral” ainda em formação. E em relação ao THC, a “nicotina do século XXI”, o que era ficção com ares de comédia está prestes a se tornar triste realidade – se essa modalidade de “smoking culture” não for combatida – sempre com base em evidências.
Porque agora o cachimbo é eletrônico e vai no estojo escolar – com cor, cheiro e sabor de melancia, manga ou “chiclé de bola”.
Big Vape e Big Cannabis “fazem parte do futuro” – já declarou [para inglês e todo mundo ver] uma das gigantes da Big Addiction, com sede na ilha do Rei. E nem mais se esconde na fumaça. Antes eia com liberdade acintosa pelas avenidas da narcomídia.
[1] disponível em – catalogo?view=detalhes&id=2101852 https://biblioteca.ibge.gov.br/index.php/biblioteca
Guilherme Athayde Ribeiro Franco é Promotor de Justiça em Campinas/SP; Especialista em Dependência Química pela UNIAD/UNIFESP; Associado da APMP e da ABEAD