Nos últimos anos, o termo “fascismo” tem sido usado de forma cada vez mais frequente, muitas vezes sem um entendimento claro do que realmente significa. Afinal, será que tudo que é autoritário pode ser chamado de fascista? O fascismo já foi associado tanto à direita quanto à esquerda, mas há base histórica para isso? E, mais importante: como identificar quando um movimento político começa a flertar com características fascistas?
O fascismo não é apenas um governo forte ou uma política autoritária. Ele surge como uma resposta reacionária em momentos de crise, prometendo restaurar a ordem e a grandeza de uma nação, enquanto busca um inimigo para culpar. Sua estratégia sempre inclui a destruição das instituições democráticas, a eliminação de direitos e o uso da violência como solução simplista para problemas complexos e o medo como forma de mobilizar e controlar as pessoas. Em vez de combater elites corruptas, como diz fazer, ele frequentemente protege e fortalece grupos que concentram poder, terras, dinheiro e influência política.
A filósofa alemã Hannah Arendt mostrou que o fascismo cresce quando as pessoas perdem a confiança na política institucional e am a buscar líderes carismáticos que prometem soluções fáceis para problemas difíceis. Você já percebeu como muitos políticos usam esse discurso? Apresentam-se como “contra o sistema”, mas acabam defendendo interesses que perpetuam desigualdades. Quem realmente ganha com isso? O cidadão comum ou as elites que controlam bancos, megacorporações e a grande imprensa?
No ensaio O Fascismo Eterno, Umberto Eco explicou que o fascismo não precisa de um regime de partido único para existir. Ele pode se infiltrar nas democracias, corroendo-as por dentro. No ado, os fascistas precisavam controlar jornais e rádios para espalhar sua narrativa. Hoje, esse trabalho é muito mais fácil com as redes sociais, onde fake news e teorias conspiratórias se espalham rapidamente. Não é coincidência que universidades, pesquisadores, professores, jornalistas e organizações independentes sejam tão atacados por movimentos ultraconservadores – quem sai lucrando quando a ciência e o pensamento crítico são desvalorizados?
Mas será que o fascismo pode ser de esquerda? O sociólogo e historiador francês Raymond Aron mostrou que, apesar de regimes autoritários existirem em diferentes espectros políticos, o fascismo nunca foi um movimento socialista. Ele sempre esteve a serviço das elites financeiras para impedir mudanças que poderiam ameaçar seu poder. Pense bem: se o fascismo fosse de esquerda, por que teria perseguido e assassinado tantos comunistas? Na Itália de Mussolini, na Alemanha de Hitler e na Espanha de Franco, os primeiros a serem presos ou mortos foram exatamente os sindicalistas, intelectuais e movimentos populares que defendiam mais direitos para os trabalhadores.
No Brasil, o sociólogo Florestan Fernandes explicou que o fascismo se manifesta de forma diferente em países como os da América Latina. Ele não precisa de uma ditadura declarada para existir, pois já opera no dia a dia da repressão policial, na desigualdade extrema e no uso da força do Estado contra qualquer movimento que questione privilégios históricos. Isso ajuda a entender por que a violência política tem crescido tanto no país e por que a extrema-direita mantém laços tão estreitos com setores militares, ruralistas e grandes empresários. Quem realmente se beneficia dessa estrutura?
Outro ponto importante: regimes como os de Stalin, na União Soviética, e Mao Tsé-Tung, na China, foram autoritários e antidemocráticos em vários aspectos, com perseguições políticas e censura, mas não devem ser considerados fascistas. Por quê? Porque, ao contrário do fascismo, que protege elites tradicionais, esses governos surgiram de revoluções que, na teoria, buscavam transformar a estrutura econômica e social. Embora tenham rompido com seus propósitos revolucionários originais, foram estruturalmente diferentes do fascismo que, historicamente, não pretende mudar a sociedade – mas manter o poder nas mãos dos mesmos grupos de sempre, eliminando qualquer ameaça à sua autoridade.
Hoje, o fascismo não se apresenta com suásticas ou discursos abertamente racistas (embora muitas de suas práticas sejam exatamente essas). Ele se modernizou. Usa a linguagem da “liberdade” para atacar direitos, distorce conceitos para transformar vítimas em inimigos e explora o medo e o ressentimento para dividir a sociedade. Já reparou como qualquer iniciativa para reduzir desigualdades é rapidamente rotulada como “comunismo”, mesmo quando apenas busca garantir dignidade a mais pessoas? Por que será que setores poderosos têm tanto medo de mudanças sociais?
Outro equívoco comum é a ideia de que o combate à corrupção e às fake news seria uma forma de fascismo. Afinal, se há crimes organizados para espalhar mentiras, incitar violência e atacar a democracia, não seria papel da Justiça agir?
No Brasil, o STF tem sido alvo de críticas, algumas legítimas, mas sua atuação contra a disseminação de notícias falsas e a incitação ao golpismo não pode ser comparada a ditaduras fascistas. Quem se beneficia quando se deslegitima o Judiciário? Não seriam exatamente aqueles que querem agir sem nenhuma fiscalização, pedindo anistia e impunidade?
Além disso, é importante lembrar que o próprio Judiciário brasileiro validou o golpe contra Dilma Rousseff, em 2016, e a prisão política de Lula, em 2018. Isso mostra que não se trata de uma instituição isenta de disputas e controvérsias, mas sim de um espaço onde diferentes interesses tentam se impor. A questão é: queremos que ele funcione para garantir princípios constitucionais ou que seja instrumentalizado para proteger os interesses dos poderosos?
Se o fascismo se baseia na manutenção das desigualdades e na destruição da diversidade das formas de ser e existir, ele é exatamente o oposto das agendas progressistas sociais e democráticas. Enquanto o fascismo defende um Estado militarizado controlado por bilionários, é preciso, em resposta, lutar por uma sociedade onde o poder seja distribuído de forma justa e horizontal, garantindo o a educação, saúde, moradia e alimentação para todos. Fascistas combatem o pensamento crítico, promovem ódio e estimulam o culto à força e à violência; por isso é necessário ampliar e fortalecer espaços de diálogo, os direitos humanos e a construção coletiva de soluções para os problemas socioambientais decorrentes da lógica predatória do capitalismo.
A história já provou que o fascismo não desaparece sozinho, mas recua diante da resistência popular. Movimentos sociais têm sido fundamentais para enfrentar o fascismo e reconstruir sociedades mais justas e democráticas, com consciência, organização e mobilização. Enquanto houver desigualdade, desinformação e medo, haverá espaço para que ele ressurja.
A única forma de garantir que não sejamos vítimas desse ciclo destrutivo novamente é fortalecer a democracia, a justiça social e a participação popular. O fascismo pode até mudar de rosto e de discurso, mas seu objetivo final será sempre o mesmo: silenciar, explorar e dominar.
Para não repetir os erros do ado e construir caminhos alternativos, que nos aproximem de justiça social, equidade de direitos e liberdades individuais e coletivas, precisamos subverter a lógica fascista e cultivar o pensamento onde a coletividade não é sinônimo de uniformidade e tradicionalismo, mas de acolhimento e respeito à diversidade.
Romper com o fanatismo patriótico e valorizar as várias formas de pensar, ser e existir do povo brasileiro e da humanidade. Transcender as crenças baseadas em fake news, pós-verdade, sensacionalismos e fazer da educação crítico-reflexiva, embasada em evidências, fatos científicos e na ética humanista, com empatia e generosidade, uma bússola que guia a jornada civilizatória. Superar o culto fundamentalista a mitos, heróis e salvadores e assumir a responsabilidade de cuidar de toda forma de vida no planeta.
Luis Felipe Valle é professor universitário, geógrafo, mestre em Linguagens, Mídia e Arte, doutorando em Psicologia.