A história dos EUA evoca a heroica luta pela liberdade e pela democracia. Pelo menos essa é a versão insistentemente construída pela indústria cultural estadunidense e a gigantesca máquina de propaganda do país que funciona como epicentro global das polarizações político-ideológicas e do intervencionismo militar, desestabilizando democracias e afundando países em guerras sem sentido – e sem fim.
Apontar para governos autoritários, antidemocráticos e militaristas como da Coreia do Norte, Venezuela, Rússia e China é uma manobra velha, embora ainda eficiente, de negar a própria tirania da democracia norte-americana. Desde a Independência dos EUA, em 1776, o pleito eleitoral é sequestrado pela disputa entre os dois mesmos partidos, regurgitando as mesmas ideias sob o falso discurso que se alterna entre a necessidade (sempre urgente) de avançar em pautas econômicas liberais ou retroceder na agenda conservadora de costumes.
A presença de dois velhos brancos e ricos à frente das eleições deste ano escancara a corrosão do espírito democrático e da ruína (ou da eficiência de controle) de uma população alienada pelo sensacionalismo, pelo discurso de ódio, pelo alarmismo e pelas notícias falsas da lucrativa indústria de engajamento (e vigilância) das redes sociais.
Há poucos meses das eleições, Donald Trump Jr., o ex-presidente bilionário de 78 anos que se diz “antissistema”, e Joseph (Joe) Biden Jr., que tenta reeleger-se aos 81 anos, limitam-se a trocar insultos sobre a incapacidade que ambos parecem ter ao governar, esquivando-se de expor à população projetos e políticas públicas realmente eficientes para combate ao desemprego estrutural, às crises na saúde e na educação, ao narcotráfico e à epidemia de opioides, ao crescimento do racismo, da xenofobia, da intolerância religiosa e à escalada da violência conforme as armas multiplicam-se nas mãos de cidadãos ditos “de bem” no país.
O próprio candidato, Trump, sofreu um atentado por arma de fogo durante o comício realizado sábado, dia 13 de julho. O atirador usava um fuzil, tinha apenas 20 anos, sem antecedentes criminais. Não era um terrorista do Estado Islâmico, tampouco um ex-agente da KGB ou um infiltrado da esquerda comunista. Era só mais um cidadão de classe média, nascido e criado nos EUA, imerso na cultura de naturalização e banalização da violência que infantiliza e reduz as complexas relações sociais, políticas e econômicas a uma luta genérica do bem contra o mal, do herói contra o vilão, de nós contra eles.
Defensor convicto do armamentismo, o ex-presidente encorajou a invasão do Capitólio em 6 de janeiro de 2021, por não aceitar sua derrota para Biden nas eleições. Entre patriotas fantasiados de vikings, carregando pistolas, fuzis e celulares transmitindo ao vivo para as redes sociais, houve 5 mortes, mais de 200 feridos e 950 prisões decretadas por crimes federais.
A tentativa de assassinato semana ada foi frustrada, felizmente, dando a Trump um destino diferente de Abraham Lincoln (assassinado em 1865), ex-presidente que assinou o Ato de Emancipação, colocando fim à escravidão de mais de 4 milhões de cidadãos e cidadãs estadunidenses apenas em 1863, quase um século depois da Independência do país, sob forte protesto de radicais conservadores, como membros da Ku-Klux-Klan, grupo supremacista que existe até hoje. Ou de Malcolm X, em 1965, e Martin Luther King Jr., em 1968, enquanto continuavam lutando pelos direitos civis da população preta estadunidense e pelo fim da segregação étnico-racial no período em que a União Soviética era apontada pela ONU como o pior e maior perigo à humanidade.
O discurso de apologia à violência como gesto heroico, usado desde o genocídio dos povos indígenas na invasão e colonização inglesa e nas marchas de ocupação do oeste, foi renovado na invasão ao Vietnã, na guerra das Coreias, nos golpes militares que impam ditaduras sangrentas na América do Sul, nas políticas de massacre aos povos palestinos, na invasão ao Afeganistão, ao Iraque e a tantos países africanos que, ainda no século XX, lutavam por sua Independência no fogo cruzado da Guerra Fria.
Além de Lincoln, James Garfield (1881), William McKinley (1901) e John F. Kennedy (1963) também foram presidentes mortos em atentados com armas de fogo. Rodney King, brutalmente assassinado pela polícia em 1991, Trayvon Martin, em 2012, Michael Brown, em 2014, e George Floyd, em 2020, foram vítimas da mesma violência estrutural, assim como milhares de pessoas todos os anos, sobretudo as que estão em vulnerabilidade socioeconômica ou fazem parte de grupos marginalizados. Como já anunciava Max Weber, todavia, quando a violência é usada pelo Estado, ela tende a ser socialmente aceita.
A agressividade nos Estados Unidos não é apenas consequência de uma história fundada e construída sobre genocídios, escravidão, exploração e dominação, mas o combustível de um discurso individualista, imediatista e raivoso que dá forma o capitalismo neoliberal, avesso à solidariedade, à cooperação e ao convívio civilizado com a diversidade e a liberdade coletiva.
Com tochas e forcados nas mãos, aplaudindo enforcamentos e esquartejamentos em praça pública, rezando fervorosamente para pneus e intervenção alienígena ou com esparadrapos nas orelhas, fazendo ameaças e espalhando mentiras nas redes sociais, as pessoas que cultuam lideranças populistas, elevadas a divindades mitológicas, estão fadadas a cometer as brutalidades que acham estar combatendo.
Em janeiro de 2023, Brasília foi palco de uma demonstração muito clara de como a alienação e a ignorância, manejadas por lideranças nefastas, podem rapidamente se converter numa onda arrebatadora de vandalismo, selvageria e destruição. Às vésperas das eleições municipais, a guerra de mentiras e a falta de diálogos trazendo à discussão problemas reais que afetam a população indicam que, no Brasil, o catastrófico cenário dos EUA pode se repetir nas eleições presidenciais de 2026.
Para evitar a polarização eleitoreira e sensacionalista que tanto empobrece, esvazia e até mesmo inviabiliza o exercício democrático, é preciso apropriar-se do senso de cidadania e pertencimento, responsabilizando-se pela verificação de informações antes de replicá-las, pela erradicação das mentiras, do negacionismo científico, do revisionismo histórico e pelo combate ativo ao discurso de ódio – racista, homofóbico, xenofóbico, machista, classista.
Ademais, é preciso perceber que os fundamentalistas ultraconservadores nem sempre se parecem com Osama Bin Laden ou Saddam Hussein.
Muitas vezes são pessoas jovens, usando ternos de grife, posando com a família tradicional em eventos onde falam sobre empreendedorismo e life coaching. Neofascistas em pele de libertários, pregando convicções dogmáticas e fazendo promessas falsas de riqueza e felicidade em troca de completa obediência, dissimulada como fé, propósito ou mindset.
Este ano, é vital eleger quadros comprometidos com as democracias populares, alicerçadas nos movimentos sociais de luta por direitos coletivos e justiça social, para que, em 2026, não sejamos reféns da disputa entre uma direita neoliberal e uma direita fascista, como nos EUA.
As raízes do governo federal estão nas cidades, onde as pessoas de fato vivem, e onde presenciam dificuldades, contradições e possibilidades. Para construir alternativas, não faz sentido eleger as mesmas pessoas, as mesmas ideias, o mesmo discurso – ainda que com novas fantasias.
É preciso ouvir as vozes que, por séculos, vêm sendo silenciadas, excluídas e massacradas.
Através da educação crítico-reflexiva e do fortalecimento das lutas populares por terra, moradia, saúde, emprego digno e descentralização do poder, romper com os tabus do conservadorismo e do elitismo. Finalmente, considerar que, para a superação das mazelas do capitalismo, herdeiro do colonialismo e da escravidão, precisamos de transformações profundas nas estruturas sociais, políticas e econômicas sob ameaça de continuar a repetir os erros do ado.
Luis Felipe Valle é professor universitário, geógrafo, mestre em Linguagens, Mídia e Arte, pós-graduado em Neuropsicologia.