O tarifaço de Donald Trump incendiou o debate sobre o capitalismo globalizado, evidenciando uma prática cada vez mais comum em sua trajetória política: a retórica agressiva e a imposição de medidas econômicas que, sob o pretexto de proteger os Estados Unidos, acabam alimentando a especulação financeira e o enriquecimento de poucos. Ao sobretaxar produtos estrangeiros, especialmente os vindos da China, Trump ameaça a estabilidade econômica global, mas recua quando os efeitos atingem diretamente os grandes conglomerados norte-americanos, como Apple e Dell. Essa seletividade deixa claro que seu objetivo real não é proteger o trabalhador americano comum, mas garantir que os gigantes da tecnologia — e seus investidores — continuem lucrando mesmo em tempos de crise.
A suspensão abrupta de tarifas após quedas históricas nas bolsas de valores levanta sérias dúvidas sobre a lisura de suas decisões. O mercado reagiu com euforia à retirada das sanções, o que levou o índice Nasdaq ao seu segundo maior desempenho em quase duas décadas na última sexta (11/04). Coincidentemente — ou não —, investidores próximos ao círculo trumpista conseguiram tirar proveito dessa oscilação. A suspeita de insider trading e manipulação de mercado se torna ainda mais plausível quando o próprio Trump, horas antes do recuo, postou nas redes sociais frases animadoras como “é um ótimo momento para comprar”. A pergunta que fica é: a quem ele está realmente beneficiando com essas jogadas?
Desde a Primeira Guerra Mundial, os Estados Unidos consolidaram seu poder econômico transformando conflitos alheios em oportunidades de crescimento interno.
Enquanto a Europa se reconstruía após 1918, os EUA emergiram como credores globais, repetindo o padrão após 1945 com o Plano Marshall — que, sob a fachada de ajuda, ampliou sua influência. Nas décadas seguintes, guerras como as da Coreia, Vietnã e, mais tarde, as intervenções no Oriente Médio (Iraque, Afeganistão, Síria) garantiram lucros bilionários ao complexo industrial-militar, alimentando Wall Street enquanto o país negligenciou investimentos em saúde pública, educação e redução das desigualdades.
Na América Latina, a Operação Condor e o apoio a ditaduras (como no Brasil em 1964) reforçaram essa lógica: a “estabilidade” geopolítica servia aos interesses de corporações estadunidenses, enquanto a miséria e a repressão se aprofundavam nos países dominados. O resultado é uma potência que sabe financiar bombas, mas não consegue (ou não quer) erradicar a pobreza em seu próprio território — onde 40 milhões vivem abaixo da linha da pobreza e o o à universidade pública ainda é um privilégio.
A economia brasileira, ainda fortemente ancorada na exportação de commodities, corre o risco de ser engolida por um cenário de incertezas, caso continue excessivamente dependente dos humores do mercado internacional.
A guerra comercial entre Estados Unidos e China pode abrir brechas momentâneas para o agronegócio brasileiro, mas isso não significa estabilidade. Ao contrário: os preços flutuam, a concorrência é acirrada, e quem paga a conta da instabilidade são, muitas vezes, os pequenos produtores e a população mais pobre, que sofre com os reflexos da inflação sobre alimentos e combustíveis.
O Brasil ainda carrega as correntes de 500 anos de espoliação: é o 2º maior exportador de alimentos do mundo, mas importa 90% dos componentes eletrônicos que usa. Enquanto vendemos minério a preço de commodity, compramos aço industrializado da China e softwares dos EUA – um ciclo que mantém o país como fornecedor de riqueza bruta, nunca como dono do conhecimento que transforma essa riqueza em desenvolvimento. Essa lógica colonial persiste porque elites locais — herdeiras da escravidão e da concentração fundiária — lucram com a submissão. A ditadura militar (1964–1985) interrompeu projetos desenvolvimentistas, o golpe contra Dilma em 2016 desmontou a indústria nacional, e o governo Bolsonaro aprofundou o vira-latismo, entregando recursos estratégicos aos EUA.
Agora, o desafio é subverter essa história. Soberania exige revolução produtiva: universalizar o o a eletricidade e internet, transformar universidades em polos de inovação, financiar projetos nacionais e taxar grandes fortunas para bancar educação pública.
Recursos como água, solos e matrizes energéticas devem ser usados para beneficiar a população que faz o país funcionar, e não bancar dividendos bilionários para acionistas estrangeiros. O agronegócio precisa conviver com a reforma agrária — afinal, quem garante a comida real do brasileiro são os pequenos agricultores. No cenário global, o Brasil deve buscar protagonismo e liderar a América Latina, não mendigar acordos com os EUA. O Sul global precisa de um projeto próprio, e o Brasil tem todas as condições para ser sua voz — desde que paremos de agir como colônia.
Em vez de apenas reagir às oscilações externas, o país pode assumir um papel mais ousado e propositivo: investir massivamente em educação pública, ciência, pesquisa e inovação tecnológica. Esse caminho, embora menos imediato, garante autonomia de longo prazo e reduz a submissão aos interesses das grandes potências. A agricultura familiar, por exemplo, que representa a base alimentar do país e sustenta milhões de pessoas, pode ser fortalecida com tecnologias adaptadas à realidade brasileira, ao invés de ser tratada como setor secundário diante do agronegócio exportador.
Trump costuma se apresentar como defensor do livre mercado, mas age como um protecionista convicto. Ao taxar produtos estrangeiros, ele contradiz os próprios princípios que diz representar. Isso não é apenas incoerente — é perigoso.
Ao minar as bases da previsibilidade econômica, ele afasta parceiros comerciais, distorce a concorrência e
fragiliza o sistema multilateral de trocas. A ironia é que muitos dos que o apoiam o fazem em nome do capitalismo e da liberdade econômica, sem perceber que suas políticas geram justamente o oposto: um mercado centralizado, autoritário e manipulado.
No caso das tecnologias da informação, a contradição é ainda mais evidente. Enquanto Trump ataca a China e finge confrontar o poder das big techs, suas ações beneficiam justamente essas empresas. A suspensão das tarifas sobre chips e equipamentos eletrônicos foi comemorada por empresas do Vale do Silício altamente dependentes da produção chinesa.
A propagação de seus discursos sensacionalistas e coléricos nas redes sociais, especialmente no X (antigo Twitter), serve como um motor de lucros bilionários para figuras como Elon Musk e Mark Zuckerberg, que monetizam o engajamento em torno das polêmicas fabricadas por esse tipo de populismo.

Enquanto os EUA se perdem em guerras infinitas, a China, desde a Revolução de 1949, executou um plano metódico de desenvolvimento. A reforma agrária redistribuiu terras, a industrialização foi priorizada mesmo sob bloqueios, e a aposta em educação técnica e ciência de ponta criou gerações de engenheiros, pesquisadores e trabalhadores qualificados. Nos anos 1980, enquanto o neoliberalismo desmontava Estados no Ocidente, a China adaptou seu modelo, combinando planejamento estatal com abertura controlada — e hoje colhe os frutos: domina 70% da produção global de painéis solares, 90% do mercado de terras raras e é líder em patentes de inteligência artificial.
Seu segredo? Investir no próprio povo. Enquanto os EUA gastaram US$8 trilhões em guerras no Oriente Médio, a China erradicou a pobreza extrema (850 milhões saíram da miséria desde 1978) e construiu a maior rede de trens-bala do mundo. O século XXI é chinês não por acaso, mas porque Pequim entendeu que poder real vem de indústria, conhecimento e cooperação — não coerção militar e chantagens econômicas.
O populismo neoliberal disfarçado de conservadorismo nacionalista precisa ser desmascarado. Ele não serve ao povo nem defende a soberania de país algum. Ao contrário, transforma políticas públicas em espetáculo, joga com o mercado financeiro como se fosse um cassino e compromete o futuro das nações em nome de interesses imediatistas. Quando o Brasil se posiciona com autonomia e propõe um modelo de desenvolvimento voltado ao seu próprio povo — com investimento em ciência, tecnologia e produção nacional — ele ameaça o modelo de dependência que esse populismo deseja manter.
Nosso país, pela sua dimensão territorial, diversidade produtiva e capacidade intelectual, tem tudo para liderar um novo ciclo de desenvolvimento na América Latina, baseado na cooperação, e não na submissão. A aproximação com os Brics e o fortalecimento do Mercosul são caminhos estratégicos, não porque se trata de escolher lados em uma disputa de potências, mas porque representam alternativas concretas ao modelo de mundo centrado nos interesses das elites financeiras norte-americanas. Isso não significa rejeitar o comércio com os EUA, mas sim negociar com soberania e de igual para igual.
Se queremos nos desenvolver de verdade, precisamos superar essa dependência e construir um projeto de país capaz de produzir conhecimento, agregar valor e formar uma população crítica, criativa e preparada para os desafios do século XXI.
A educação pública, do ensino básico ao superior, precisa ser tratada como eixo central de soberania. Não se trata apenas de formar trabalhadores, mas de criar condições para que o Brasil se torne um polo de inovação, com universidades conectadas às demandas sociais, centros de pesquisa financiados com recursos públicos e parcerias que respeitem nossa autonomia. Ao investir em ciência e tecnologia, o Brasil a a disputar protagonismo e não apenas a obedecer regras impostas de fora.
É fundamental compreender que o futuro de um país não se garante com bravatas, frases de efeito ou publicações em redes sociais. A verdadeira liderança se constrói com planejamento, com políticas públicas consistentes e com responsabilidade diante das próximas gerações. Trump pode até convencer com discursos inflamados, mas a realidade mostra que suas ações servem mais aos bilionários do que aos trabalhadores que o apoiam.
É hora de refletir com mais profundidade sobre que tipo de nação queremos ser.
Um país refém dos caprichos de líderes estrangeiros que jogam com a economia global como se fosse um tabuleiro de apostas? Ou uma nação soberana, que investe no seu povo, defende sua democracia e constrói um futuro com base na justiça social, no conhecimento e na cooperação internacional? A escolha está nas mãos de todos nós — inclusive daqueles que, mesmo irando líderes como Trump, ainda não perceberam que estão sendo usados como massa de manobra para interesses muito distantes dos seus.
Luis Felipe Valle é professor universitário, geógrafo, mestre em Linguagens, Mídia e Arte, doutorando em Psicologia.