A maratona de vestibulares de final de ano suscita, mais uma vez, o debate sobre a necessidade (e eficiência) desse método tão controverso de o às universidades do Brasil. Não é segredo que, num país profundamente marcado por desigualdades históricas, um sistema supostamente baseado na meritocracia tende a ampliar contrastes enraizados na matriz educacional brasileira, onde estudantes de diferentes classes sociais dispõem de oportunidades drasticamente desiguais ao longo de sua trajetória acadêmica.
Apesar da promessa de avaliar competências essenciais para o ensino superior e a vida adulta, como raciocínio lógico-dedutivo, leitura interpretativa, escrita propositiva e capacidade de compreensão crítica sobre a realidade, o vestibular reflete uma conjuntura de precarização e instrumentalização da Educação que dificulta a validação de sua função primordial como caminho para autonomia e emancipação da juventude.
A falsa lógica meritocrática dos exames ignora as profundas diferenças entre estudantes que tiveram o a escolas particulares, professores melhor remunerados, material didático atualizado e cursos preparatórios focados nas avaliações, em contraste com aqueles que enfrentaram o desmonte das escolas públicas e, frequentemente, precisaram trabalhar desde cedo para garantir o sustento de suas famílias.
Na contramão das políticas de ampliação do o e permanência no Ensino Superior, como a adoção de cotas sociais e étnico-raciais pela Lei nº 12.711/2012, durante o governo Dilma Rousseff, ataques à educação pública vieram com a reforma do Novo Ensino Médio, no governo Temer, endossados pelo discurso de desprezo aos estudos e à ciência sob Bolsonaro e, recentemente, na tentativa de militarizar, sucatear e entregar escolas públicas a empresas privadas na gestão Tarcísio/Nunes no estado e na cidade de São Paulo.
O discurso contrário à educação crítico-reflexiva, impulsionado por lideranças populistas reacionárias, como Trump, Milei, Orbán e Bolsonaro, combinados à retórica de coachs mercenários, líderes religiosos da teologia da prosperidade e promotores de esquemas financeiros, tem corroído a confiança da população e de estudantes na Educação como caminho para ascensão socioeconômica. A ideologia anti-intelectual empobrece o papel das instituições de ensino, esvazia o debate público sobre o papel transformador da Educação e coloca o vestibular em uma posição contraditória, tanto como um balizador de qualidade quanto como um mecanismo que perpetua exclusões.
Se, por um lado, é fundamental saber ler e escrever para fazer um curso de Direito ou Jornalismo, assim como dominar funções matemáticas básicas para cursar Engenharias, ou compreender princípios bioquímicos para ingressar num curso de Medicina, é fundamental, também, desenvolver habilidades essenciais como empatia, criatividade, respeito, disciplina e autocontrole emocional para enfrentar o Ensino Superior.
Escolas que seguem sendo reduzidas a centros de formação de mão-de-obra obediente, treinada para produzir e consumir, marchar e orar, não cumprem o papel de formar cidadãos e cidadãs pensantes.
O avanço da era informacional também trouxe desafios ao desenvolvimento de competências fundamentais para a vida adulta. Jovens de maior poder aquisitivo, superprotegidos por familiares, que evitam frustrações e responsabilidades, chegam aos vestibulares despreparados emocionalmente para lidar com cobranças, expectativas e frustrações. Ao mesmo tempo, a dependência de dispositivos digitais e ferramentas que parecem facilitar tarefas cotidianas, como Chat GPT, prejudica gravemente o desenvolvimento de habilidades cognitivas ligadas a leitura reflexiva, pensamento abstrato, argumentação racional e resolução de problemas complexos.
Os crescentes índices de ansiedade, depressão e outros transtornos emocionais entre jovens reforçam a urgência de pensar num outro olhar para a Educação – nas escolas e nos lares. Estamos preparando estudantes para que, afinal?
A lógica mercantilista, competitiva e individualista do modelo neoliberal deforma a Educação, valorizando resultados quantitativos e utilitários em detrimento do desenvolvimento integral dos estudantes. A prioridade pelo atendimento às demandas do mercado, essa entidade imaginária que representa os interesses da minúscula fração de pessoas ricas que controlam o país, reduz a Educação a um adestramento produtivo, desumanizando o processo de aprendizagem, negligenciando habilidades como criatividade, autonomia e pensamento crítico.
Essa visão instrumentalizada distancia a formação escolar de sua dimensão transformadora, criando um ciclo vicioso de superficialização e inércia intelectual. Atalhos tecnológicos e uma abordagem bancária, como descrito por Paulo Freire, transformam o conhecimento em um produto vendável, limitando o potencial de (trans)formação de sujeitos conscientes, responsáveis e socialmente engajados.
Enquanto as pessoas de menor poder aquisitivo são excluídas de oportunidades de disputar vagas nas melhores Universidades do país, as públicas, surgem cada vez mais laudos médicos e estratégias de medicamentalização para justificar (e uniformizar) neurodiversidades que são percebidas como falhas numa estrutura social que visa a produtividade econômica, e não o bem-estar das pessoas.
Assim, ao o que vestibulares para universidades públicas como Unicamp, USP, Unesp e as federais, através do Enem, criam uma desleal competição entre pessoas que se prepararam enfrentando desníveis abissais em suas trajetórias, as universidades particulares ficam íveis apenas a quem dispõe de poder aquisitivo para pagar caro pelos estudos.
A formação de cidadãos e cidadãs capazes de transformar a realidade exige uma reconfiguração do sistema educacional que transcenda a lógica dos vestibulares excludentes. É necessário um ensino baseado na autonomia do pensamento, na criatividade e na solidariedade, priorizando uma abordagem que valorize as singularidades humanas e acolha as diversidades, ao invés de buscar padronizar experiências e resultados.
Nesse cenário, os vestibulares, embora imperfeitos, poderiam ser repensados como parte de um sistema educacional mais inclusivo, equitativo e justo. Isso requer políticas públicas robustas que assegurem qualidade no ensino básico, garantindo que todas as crianças e jovens tenham o a uma formação capaz de prepará-los não apenas para exames competitivos, mas para os desafios da vida adulta e exercício pleno de sua cidadania.
A Educação como direito universal vislumbra que as escolas sejam íveis a todas as pessoas, funcionando como espaços de acolhimento, diversidade e produção de conhecimentos científicos, mas, também, de laços afetivos, de respeito e confiança, e a construção de significados guiados pelo humanismo.
A Educação, numa sociedade que se deteriora a cada dia diante da exploração predatória de recursos naturais e relações humanas, precisa ter seu papel transformador resgatado, para que possa enfrentar tanto o negacionismo científico e anti-intelectual de igrejas, quartéis e redes sociais, quanto a lógica neoliberal de instrumentalização e mercantilização do conhecimento. Repensar o vestibular, e não apenas extingui-lo, é parte dessa transformação. A defesa da universalização do o à educação de qualidade, assim como da ampliação de vagas em escolas e universidades, a valorização de professores e professoras, a popularização da ciência, o combate ao fundamentalismo religioso e ao fanatismo político, e o reencantamento pelo conhecimento como forma de contemplação, compreensão e interação com o mundo são faróis que guiam essa árdua jornada.
Mais do que preparar para o vestibular ou para o mercado de trabalho, o ato de educar deve ser um processo de emancipação coletiva, que possibilite às pessoas imaginar e construir, efetivamente, um mundo menos desigual, mais solidário e mais humano.
Ao rejeitar a lógica individualista e competitiva imposta pela mercantilização do ensino, essa Educação permite resgatar a capacidade de sonhar e desejar alternativas às estruturas obsoletas que regem nossas vidas, apontando para a construção de sociedades inspiradas pela justiça social, pelo respeito mútuo e pela liberdade.
Luis Felipe Valle é professor universitário, geógrafo, mestre em Linguagens, Mídia e Arte, pós-graduado em Neuropsicologia.