Giulia, 26 anos, jovem na plenitude, eava como tantos turistas pelo centro histórico de Salvador, em fevereiro deste ano. Na visita à maravilhosa Igreja de São Francisco de Assis, a “Igreja de Ouro”, como é conhecida, morre com o desabamento de parte do teto. Outras cinco pessoas ficam feridas. Assim, com essa tragédia que jamais será redimida, o Brasil novamente se voltou para a discussão sobre o seu patrimônio histórico. Culpa daqui, culpa dali, mas depois de alguns dias volta a realidade, e ela é dura. O patrimônio histórico nacional, cultural ou natural, continuará cada vez mais ameaçado, e as causas são mais do que conhecidas.
Há um senso comum afirmando que o Brasil não protege seu patrimônio porque é um país sem memória. Não é de todo verdade. Os cidadãos e as cidadãs chamados comuns cultivam e celebram a memória, suas raízes, culturais e\ou religiosas, e para constatar essa verdade basta verificar as multidões que participam, se comovem e se envolvem diretamente em festas como as do Círio de Nazaré, da lavagem do Bonfim ou das Festas do Divino por todo país. Nem é preciso lembrar das Festas Juninas e do Carnaval, que não deixam de ser celebrações cujas origens se perdem no tempo.
O que de fato existe, na base da negligência com o patrimônio, é que a sua proteção não é considerada prioridade no elenco das políticas públicas, seja em governos de direita ou de esquerda. Os orçamentos públicos, nas esferas municipais, estadual e federal, para a salvaguarda do patrimônio histórico ou natural são limitadíssimos, em comparação com outras áreas.
Não é preciso dizer que em governos à direita os orçamentos são muito menores. Também existem os casos extremos de ideologias fundamentalistas que até pregam a destruição de patrimônios, pois eles seriam contrários a suas crenças. Mas ainda bem que continuam sendo exceções.
O fato é que, depois da tragédia de fevereiro em Salvador, na Igreja que integra o centro histórico considerado patrimônio cultural mundial pela Unesco, de alguma forma o tema voltou à tona.O Iphan vem sendo fortalecido no atual governo federal, embora ainda distante do ideal. Tomara que o debate permaneça, porque a preservação do patrimônio, cultural ou natural, material ou imaterial, diz respeito à própria identidade de uma cidade, de um país, de um povo.
Sem a proteção dessa memória, dessa identidade, esse povo será incapaz de enfrentar um futuro cada vez mais incerto e instável. O que se prevê é um mundo cada vez mais tecnológico, artificial. Se não houver a conservação da memória, da identidade de um povo, em uma palavra, da sua própria alma, esse povo corre o sério risco de não ver nenhum sentido na beleza da vida, e isso é muito perigoso. Os países onde houve maior avanço tecnológico, como o Japão, cultivam e seriamente suas raízes, têm muito zelo por suas tradições, por sua cultura. Sem isso, não há ado, presente ou futuro.
Essas reflexões são importantes neste momento prévio a mais um Dia Internacional dos Monumentos e Sítios, ou Dia do Patrimônio Mundial, lembrado a 18 de abril. Neste ano, o tema do Dia do Patrimônio Mundial é “Patrimônio resiliente face às catástrofes e conflitos”. Um tema para lembrar das muitas ameaças aos monumentos e sítios considerados patrimônio cultural, por todos os cantos do planeta.
A lista do patrimônio mundial da Unesco contém hoje 1200 sítios, considerando monumentos ou locais considerados patrimônio mundial da humanidade. Deste total, mais de 50 são considerados em situação de perigo, por diversos fatores, como conflitos armados, urbanização desenfreada e outros. O tema do Dia do Patrimônio Mundial de 2025 é nesse sentido muito relevante, considerando por exemplo as mudanças climáticas que também podem vir a ser uma nova grande ameaça aos patrimônios culturais ou naturais da humanidade.
O Brasil tem hoje 24 monumentos ou sítios considerados patrimônio da humanidade, sendo 16 culturais, 7 naturais e um misto, no caso, o sítio de Paraty e Ilha Grande, inscrito em 2019 na lista da Unesco. Nenhum está na lista de patrimônios em perigo da Unesco, pelos critérios adotados pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura.
Entretanto, é evidente que outros patrimônios, e são muitos, naturais ou culturais, continuam sob sério risco em todas as regiões do país. Aqui mesmo em Campinas, como um mas não único exemplo, tivemos o caso do Palácio dos Azulejos, cuja demolição chegou a ser pregada até por governantes, mas foi impedida por forte reação de intelectuais e da sociedade em geral, como foi denunciado no livro “Palácio dos Azulejos – Cenas de ressignificação e ocupação popular de um prédio histórico de Campinas”, de minha autoria e de Martinho Caires, lançado em 2022.
Então é fundamental que o trabalho de profissionais do setor seja mais reconhecido, valorizado, e que sejam fortalecidas e mesmo multiplicadas organizações sociais voltadas para a proteção do patrimônio, assim como são consideráveis em número e força as organizações que se dedicam à proteção ambiental. Afinal, a Convenção para a Proteção do Patrimônio Mundial, Cultural e Natural – Carta de Paris, aprovada em novembro de 1972, na décima sétima sessão da Unesco, contempla a urgência de proteção tanto do patrimônio material como do natural. As paisagens, os ambientes naturais, também formam parte da memória coletiva e devem ser preservadas, agora ainda mais, considerando, de novo, a aceleração das mudanças climáticas.
“A degradação ou o desaparecimento de um bem cultural e natural acarreta um empobrecimento irreversível do patrimônio de todos os povos do mundo”, afirma a Carta de Paris, em seu Preâmbulo. É um dever coletivo ético da humanidade lutar pelo seu patrimônio, sob o risco de ficar cada vez mais empobrecida material e espiritualmente.
José Pedro Martins é jornalista, escritor e consultor de comunicação. Com premiações nacionais e internacionais, é um dos profissionais especializados em meio ambiente mais prestigiados do País. E-mail: [email protected]