Recostado na bancada, Abdala Bitar, prestes a completar 96 anos, observa o cliente se surpreender com a notícia de que o estabelecimento irá fechar. Os poucos produtos em promoção expostos não causam estranheza, já que o forte da Sapataria Bittar sempre foi o conserto de calçados e malas. E não são só as prateleiras que se esvaziam para sempre. O ofício de sapateiro também se perde no tempo. A loja vai baixar as portas por falta de mão de obra – que nem precisaria ser qualificada. Ali se vão 72 anos de história no bairro Castelo, em Campinas.
A Sapataria Bitar é uma das mais antigas de Campinas, se não a mais longeva. Seu Abdala tinha 13 anos quando iniciou no ofício de sapateiro, na cidade de Nuporanga, região de Ribeirão Preto. E 82 anos depois de ter ingressado na profissão, ele ainda lembra de seu mentor, Vicente Ambrósio, o homem que sabia tudo sobre calçados.

Quando a prática já estava dominada, oito anos depois, seu Abdala se mudou para Campinas, onde seguiu com o trabalho no Centro da cidade. Não foi difícil encontrar freguesia e decidir que essa era a cidade em que viveria para sempre.
“Eu abri uma sapataria perto do Timoteo Barreiro, mas quando foram alargar a Francisco Glicério, o imóvel foi demolido e eu me mudei aqui para o Castelo, de onde nunca mais saí”, recorda. A maior parte do tempo o comércio funcionou na rua Orando Carpino e mais recentemente se transferiu para a rua Pereira Tangerino, onde dividia espaço com uma agência de turismo pertencente à família.
Até quatro anos atrás, seu Abdala ainda ajudava nos consertos e no atendimento aos clientes, e nos últimos 15 anos, ganhou a valiosa ajuda do neto Anderson Lulu Bitar – um dos poucos que consideraram fazer do ofício de sapateiro uma ocupação principal.
Ele tocou a sapataria quando o avô sentiu o peso do trabalho e dos anos. Ampliou o comércio de produtos de couro, como carteiras e cintos, porém, sozinho não conseguiu atender à demanda principal de consertar calçados e malas.

Mão de obra
Noeli Seregatti, nora de seu Abdala, conta que os últimos anos foram especialmente difíceis. Não havia proposta de trabalho que encantasse os candidatos. Cerzir, costurar, colar e rejuvenescer sapatos rodados eram tarefas pouco atraentes aos olhos dos que respondiam às ofertas de emprego. Nem o salário inicial de R$ 4 mil, na média, colaborava com a missão.
“Consegui treinar e ensinar o ofício a alguns, mas eles logo desistiram. Quem ficou mais tempo com a gente e entendeu o valor dessa profissão, saiu e iniciou um negócio por conta. Os sapateiros estão acabando, ninguém mais quer realizar esse trabalho que sustentou minha família e me deu tantas alegrias”, lamenta seu Abdala.
“Chegamos até a oferecer trabalho para pessoas que pediam ajuda nos semáforos. Oferecíamos um bom salário, registro e estabilidade, mas nem assim tivemos sorte. Ouvi de alguns que eles ganhavam mais nos sinais, onde tinham possibilidade de ‘trabalhar’ quando quisessem”, recorda Noeli.

Essa é uma profissão desinteressante aos olhos dos mais jovens, crê Noeli. “A área de trabalhos manuais já não é mais atrativa. Sem contar que as pessoas compram calçados de qualidade inferior, descartáveis, nem compensa arrumar”.
Para quem ou 82 anos em uma sapataria, o motivo pelo qual ninguém mais se interessa pelo ofício é um mistério. “Veja só, os barbeiros ainda existem, as manicures também, mas quase não tem mais sapateiros!”
No dia 21 de abril, seu Abdala irá completar 96 anos, já sem o comércio com o qual formou família. Na loja, observa os últimos movimentos e tenta ajudar na revenda das máquinas de costura e equipamentos com os quais construiu uma história de vida. Sapateiro desde os 13 anos de idade, Abdala Bitar esvazia prateleiras e aquece as memórias de Campinas.