Tomar o Canadá, a Groenlândia e o México, rebatizando o Golfo da “América”; concluir o genocídio na Palestina transformando Gaza numa “Riviera” do Oriente Médio; declarar guerra comercial contra parceiros globais do comércio internacional; retirar os EUA da Organização Mundial da Saúde, do Conselho de Direitos Humanos, do Acordo de Paris e romper com a agência de refugiados da ONU; cortar programas de auxílio humanitário em países assolados por guerras (em muitos casos causadas pelos EUA); dar poderes ilimitados a bilionários e especuladores do setor financeiro ando informações sigilosas da Casa Branca; desmontar políticas públicas de proteção a grupos marginalizados e em vulnerabilidade socioeconômica – tudo isso em pouco menos de um mês à frente de um segundo mandato.
A campanha de Donald Trump em 2024 não foi apenas uma repetição do populismo agressivo que marcou sua primeira vitória; foi uma escalada rumo a um discurso explicitamente fascista, repleto de ataques a minorias, ameaças a opositores e promessas de um Estado submetido ao autoritarismo de seu líder. Diante de um eleitorado exaurido pelo fracasso das políticas neoliberais, que aprofundaram desigualdades e precarizaram ainda mais a classe trabalhadora, Trump capitalizou a frustração popular alimentando ressentimentos e promovendo o culto à violência como ferramenta de poder. Sua campanha não ofereceu soluções concretas para os problemas estruturais dos EUA – apenas promessas de “vingança” e perseguição aos que seriam responsáveis pela decadência do país.
O fascismo, em qualquer tempo e lugar, cresce sobre o terreno fértil da crise econômica e social. Nos EUA, onde a desindustrialização, o aumento do custo de vida e a precarização do trabalho enfraquecem a classe média, a retórica ultraconservadora de Trump mobilizou os afetos mais primitivos da população: medo, ódio e desejo de domínio. Em vez de apontar para reformas que corrigissem o desequilíbrio do sistema, sua narrativa reforçou o mito do inimigo interno e externo – migrantes, adversários políticos, a China, e até mesmo as instituições democráticas – como alvos de uma guerra política total.
O crescimento econômico da China e sua consolidação como potência global são a maior ameaça ao modelo ocidental de capitalismo financeiro-informacional. Diferente dos EUA, que apostaram na desregulamentação dos mercados e na financeirização da economia, a China seguiu um caminho oposto: controle estatal sobre setores estratégicos, investimentos massivos em infraestrutura e ciência, e a promoção de um modelo econômico híbrido que mescla planejamento estatal e inovação privada. Esse modelo não apenas desafia o neoliberalismo, mas também expõe suas falhas, pois demonstra que o desenvolvimento não precisa estar atrelado ao colapso social.
A ascensão chinesa agrava a crise política nos EUA porque evidencia o declínio da hegemonia estadunidense. Sem respostas estruturais para reverter a estagnação de sua economia produtiva, o governo dos EUA recorre a medidas desesperadas, como sanções, ataques diplomáticos e uma nova Guerra Fria. Trump representa a face mais agressiva desse movimento: em vez de adaptação e inovação, aposta na hostilidade e no nacionalismo exacerbado, evocando o mesmo ressentimento que levou ao nazi-fascismo na década de 1930.
A ideia de que os EUA sempre foram uma democracia sólida ignora os inúmeros episódios de autoritarismo e expansionismo que marcaram sua história. O Destino Manifesto e a Doutrina Monroe pavimentaram a lógica imperialista americana, justificando intervenções militares e anexações territoriais sob a alegação de um “dever civilizatório”. O Big Stick e a Doutrina Truman reforçaram a visão dos EUA como árbitros supremos da ordem mundial, enquanto a Guerra ao Terror consolidou um Estado securitário e vigilante, onde liberdades civis foram sacrificadas em nome de uma suposta segurança nacional.
Trump não é um fenômeno isolado; ele é o desdobramento mais radical de um processo que sempre esteve presente na política externa e interna dos EUA. Suas bravatas e ameaças não são novidade – o que muda é a escala da ofensiva autoritária dentro de seu próprio território, com ataques abertos às instituições e à própria democracia. Se antes os EUA impunham sua dominação pelo intervencionismo global, agora tentam manter sua hegemonia por meio, também, do autoritarismo interno.
O populismo autoritário de Trump serve para encobrir uma verdade incômoda: a crise econômica dos EUA é estrutural e irreversível dentro dos moldes atuais. O país ostenta a maior dívida pública do planeta, enquanto sua economia perde dinamismo para potências emergentes como China e Índia. Em resposta, Trump investe na retórica do inimigo externo e na militarização do discurso político, buscando um bode expiatório para a falência do modelo neoliberal.
Enquanto os EUA desmoronam economicamente, sua democracia também se deteriora. O poder antes distribuído entre instituições democráticas agora se concentra nas mãos de uma elite bilionária que controla big-techs e informações estratégicas. Musk, Bezos e Zuckerberg não são apenas magnatas da tecnologia; são agentes ativos na construção de um novo modelo de governança, onde decisões de Estado são pautadas por interesses privados. Trump representa a formalização desse processo, transformando o governo em um balcão de negócios para bilionários sem qualquer responsabilidade social.
Em seu segundo mandato, Trump parece ainda menos preocupado com o futuro do que antes. Seu governo não apenas acelera a destruição ambiental como também aumenta a instabilidade global, ignorando completamente as consequências para as futuras gerações. A crise climática, já fora de controle, é tratada como um inconveniente secundário em sua agenda de curto prazo, enquanto acordos ambientais são descartados em prol dos interesses da indústria fóssil.
A lógica do lucro imediato sobre a sobrevivência do planeta não é apenas uma irresponsabilidade – é uma sentença de morte. O agravamento de tensões militares e o desprezo por políticas ambientais colocam em risco não apenas as populações mais vulneráveis, mas toda a humanidade. Trump e seus aliados não governam para o amanhã; governam para extrair até a última gota de riqueza antes do colapso.
A radicalização ideológica nos EUA tem ecos no mundo inteiro, inclusive no Brasil. O trumpismo, ao flertar com o bolsonarismo, faz um aceno estratégico à extrema-direita brasileira, mas essa relação não é de parceria – é de subordinação. O Brasil corre o risco de ser reduzido a um satélite dos interesses estadunidenses, tal como ocorreu durante a ditadura militar de 1964, quando o país serviu como peça no tabuleiro geopolítico dos EUA.
A retórica de “cooperação” entre bolsonaristas e trumpistas esconde uma realidade crua: a extrema-direita brasileira não tem projeto soberano. Seu alinhamento cego com Trump ameaça transformar o Brasil em uma republiqueta sem autonomia, fragilizando sua posição geopolítica e entregando seus recursos naturais e tecnológicos aos interesses norte-americanos.
A resistência ao avanço da extrema-direita só será possível com uma aposta sólida na educação crítica e no fortalecimento de espaços democráticos, mas isso precisa vir acompanhado de um projeto econômico e social que enfrente as desigualdades estruturais. O pensamento progressista não pode se limitar a denunciar as ameaças autoritárias – deve apresentar soluções concretas para que a população enxergue na esquerda democrática um caminho viável para a prosperidade coletiva.
Isso a pela construção de um modelo de desenvolvimento baseado na valorização da ciência e tecnologia nacionais, na transição energética para fontes renováveis e sustentáveis, e na criação de mecanismos de redistribuição de riqueza que garantam o universal a direitos básicos como saúde, educação, moradia e alimentação. Sem essas bases, a insatisfação popular continuará a ser capturada pelo populismo reacionário, que explora ressentimentos em vez de propor saídas reais para a crise.
A regulamentação das redes sociais e do poder desmedido dos bilionários da tecnologia é imprescindível para a defesa da democracia.
Empresas como Meta, X (antigo Twitter) e Google atuam como agentes políticos, manipulando o debate público e promovendo desinformação em larga escala para favorecer projetos de poder que atendem aos seus interesses privados. A ausência de regulação permite que esses magnatas consolidem uma influência comparável à de Estados nacionais, minando as instituições democráticas e direcionando a política conforme seus próprios caprichos.
Partidos e movimentos sociais democráticos precisam enfrentar essa ameaça, propondo medidas que garantam transparência algorítmica, proteção de dados e mecanismos de regulação social sobre as plataformas digitais, evitando que elas continuem a ser usadas como armas de manipulação política e amplificação do discurso de ódio e desinformação.
No Brasil, enquanto a direita populista aposta na destruição de políticas públicas e na entrega do país aos interesses estrangeiros, é a esquerda democrática que defende um projeto genuinamente soberano. A agenda progressista não se limita ao Brasil: ela tem potencial para reposicionar o país como referência para a América Latina e a África, estabelecendo acordos multilaterais de cooperação que fortaleçam a soberania dos países do Sul Global. Ao invés de servirmos como meros exportadores de commodities para potências estrangeiras, devemos investir em ciência, tecnologia e inovação, garantindo que a riqueza nacional beneficie diretamente o povo brasileiro.
O avanço do fundamentalismo, do conservadorismo e do fanatismo não é uma inevitabilidade histórica, mas um fenômeno que pode e deve ser combatido com organização política e participação ativa da sociedade.
As eleições de 2026 serão um momento crucial para consolidar um modelo de governança comprometido com a justiça social, os direitos humanos e a sustentabilidade ambiental. A escolha estará, novamente, entre um projeto de país soberano, capaz de liderar iniciativas progressistas no cenário global, ou um retorno ao obscurantismo, à destruição de políticas sociais e à submissão aos interesses do grande capital.
Lideranças democráticas têm a responsabilidade de apresentar uma agenda concreta e viável, que dê ao povo brasileiro a escolha de não sucumbir ao caos do populismo reacionário, para seguir na construção de um projeto de nação guiado pela igualdade, pela solidariedade, pela liberdade e pelo progresso compartilhado.
Luis Felipe Valle é professor universitário, geógrafo, mestre em Linguagens, Mídia e Arte, pós-graduado em Neuropsicologia.