E se o colapso que tanto tememos não for o fim do mundo, mas apenas o fim de um mundo? Ailton Krenak, com a sabedoria dos povos da terra, nos convida a desconfiar do apocalipse como narrativa única. O que está em ruínas, sugere ele, não é o planeta, mas um sistema que já esgotou sua capacidade de fingir sustentabilidade. Enquanto o Ocidente se debate em crises sobrepostas – climáticas, políticas, existenciais –, os povos originários seguem tecendo alternativas.
Não precisamos acabar com a vida; precisamos acabar com a máquina que a devora. Enrique Dussel nos lembra que essa máquina tem nome: é o colonialismo que se recicla no capitalismo, transformando desigualdades em estatística e vidas em descartáveis.
O consumismo desenfreado e a obsessão pelo crescimento infinito não são acidentes: são a expressão de uma civilização que se vê separada da natureza.
Krenak nos sacode: a Terra não é um depósito de recursos, mas um organismo vivo. Vandana Shiva completa o pensamento com um alerta: ao reduzir biodiversidade e culturas a mercadorias, o “progresso” produziu pobreza e desertos – verdes e humanos. A saída? Romper com a lógica que nos ensinou a dominar, em vez de pertencer.
Olhe para o agronegócio, por exemplo: monoculturas que envenenam, latifúndios que engolem territórios. Agora olhe para as agroflorestas de indígenas e quilombolas – ali, a terra alimenta e é alimentada. Carlos Walter Porto-Gonçalves nos mostra que essas práticas não são “atraso”, mas ciência viva, capaz de nutrir sem destruir. Enquanto o mercado global impõe sua monocultura do pensamento, essas sementes de resistência germinam futuros possíveis (e necessários).
Até nosso relógio interno foi colonizado. A ideia de tempo como uma linha reta rumo ao “progresso” nos condena à ansiedade permanente. Krenak reflete sobre o tempo circular dos povos originários – onde ado e futuro se encontram no cuidado do agora. Silvia Rivera Cusicanqui denuncia a tirania da produtividade, que nos roubou o direito de respirar junto com as estações.
No trabalho, a engrenagem aperta: jornadas intermináveis, mentes esgotadas, vidas reduzidas a “recursos humanos”. Achille Mbembe chama isso de necropolítica – quando a economia decide quem merece viver. Krenak nos provoca: e se o trabalho servisse à vida, e não ao lucro? Byung-Chul Han expõe o paradoxo: nos acreditamos livres enquanto nos exploramos sem piedade. A verdadeira liberdade, insiste Krenak, está em dizer “basta” a essa roda de hamster.
A doença não está só nos corpos; está na lógica que nos ensina a competir em vez de cooperar. Medicalizamos a exaustão, mas não curamos sua causa: um sistema que nos isola e nos cobra sermos máquinas. O diagnóstico é claro: estamos doentes de capitalismo.
A raiz do problema? A ilusão de que somos donos da Terra.
Michael Löwy mostra como essa mentira justificou séculos de pilhagem. Maristella Svampa aponta a saída: reconhecer os direitos da natureza, como já fazem culturas ancestrais. Não se trata de romantismo, mas de sobrevivência: rios com personalidade jurídica são só o primeiro o.
A resistência de formas de existência, como entre povos originários, prova que outros modelos são possíveis nas reconfigurações e disputas não só por terra, mas por modos de expressão que o neoliberalismo tenta apagar. Milton Santos sabia: o mapa do poder global tenta calar certas vozes, mas elas insistem em ecoar. Na educação, Boaventura de Sousa Santos desafia a ditadura do saber ocidental: é hora de ampliar o diálogo de cosmologias.
A colonização do espaço e a inteligência artificial tornaram-se os novos contos de fada do capitalismo tardio – narrativas que desviam o olhar da urgência terrestre, como se pudéssemos abandonar um planeta exaurido em naves comandadas por poucos. Jason Moore, historiador ambiental, lembra que essa é a mesma lógica colonial que justificou a exploração da Terra: agora, disfarçada de “progresso científico”, repete a promessa de fronteiras infinitas para extrair, enquanto ignora que a crise é política, não tecnológica.
A verdadeira inovação não está em máquinas que simulam consciência, mas em redes de cuidado que restauram nosso tecido social – como as teias de solidariedade que indígenas, camponeses e periferias urbanas tecem diariamente, sem precisar de big data para saber quem tem fome.

A ciência mercenária, subordinada ao lucro, sequestra a criatividade humana para transformá-la em commodity. Vandana Shiva adverte: quando o conhecimento vira propriedade privada e a vida é objetificada, estamos repetindo a tragédia dos cercamentos – só que agora, em escala digital. Não se trata de rejeitar a tecnologia, mas de resgatá-la das garras dos especuladores. É possível produzir saberes livres, voltados para necessidades coletivas e não para a acumulação.
A saída não está em mais hardware, mas em mais afeto; não em algoritmos que nos vigiam, mas em vínculos que nos emancipam. Enquanto Elon Musk fala em neurônios artificiais, Ailton Krenak nos lembra que já temos, há milênios, a tecnologia mais sofisticada: a capacidade de sonharmos, juntos, um mundo onde ciência e poesia, como raízes e folhas, alimentem-se mutuamente.
Há quem diga que sonhar com um mundo sem guerras ou pobreza é ingenuidade. Mas a verdadeira ingenuidade é acreditar que este mundo pode seguir assim.
O capitalismo não é lei da natureza; é apenas mais um capítulo numa história que existia antes e seguirá existindo depois. O pós-capitalismo não será um retorno ao ado nem uma distopia high-tech: será o reconhecimento de que já existem mundos que dão certo – nas comunidades que nunca separaram humano de natureza, trabalho de vida, indivíduo de coletivo.
Um mundo que pode dar certo já está sendo construído! Nas brechas do colapso, há gente plantando jardins onde o sistema vê desertos. Em cada ocupação de terra improdutiva, em cada rede de cuidado construída, em cada ato de solidariedade entre trabalhadores precarizados, no uso de tecnologias para combater a exploração e priorizar qualidade de vida, germinam alternativas ao esgotamento neoliberal.
Trabalhar menos, trabalharmos todos, produzir o necessário e distribuir tudo. O trabalho pode ser libertador se deixar de ser mercadoria; pode ser vínculo, não exaustão; expressão de vida, não instrumento de morte; criatividade compartilhada, não riqueza acumulada. O futuro não é uma linha reta. É uma trama viva, tecida com fios de resistência, memória e esperança por aquelas e aqueles que, mesmo oprimidas e marginalizados, nunca deixaram de sonhar – e de construir, no agora, mundos nascidos da subversão e da luta coletiva.
Luis Felipe Valle é professor universitário, geógrafo, mestre em Linguagens, Mídia e Arte, doutorando em Psicologia.