A I das bets, aberta em novembro de 2024, tem revelado o que muitos já desconfiavam, mas preferiam ignorar: por trás das promessas de ganhos fáceis de apostas online estão esquemas bilionários que envolvem aplicativos fraudulentos, manipulações algorítmicas e uma rede de influenciadores que, com sorrisos sedutores e discursos de motivação, lucram com o desespero alheio.
Intimados a prestar depoimento, nomes como Virgínia Fonseca, Jojo Todynho, Viih Tube, GKay, Carlinhos Maia, Gusttavo Lima e Wesley Safadão se veem agora no centro de uma investigação que não questiona apenas contratos publicitários, mas também a moralidade de uma sociedade que os celebra.
Os cassinos digitais não dependem de modo algum da sorte. Usam táticas de manipulação emocional e tecnológica para capturar o desejo de ascensão social de milhões de brasileiros para acumular dinheiro para seus controladores. Com a credibilidade emprestada por celebridades, prometem ganhos instantâneos, inatingíveis.
A lógica é simples: quanto mais desesperado o sujeito, mais vulnerável ele está à ilusão de que apertar um botão pode transformar sua vida. O “jogo” é montado para que ele perca. E perca muito. Já os influenciadores, ganham — e não é pouco — sempre que alguém cai na armadilha.
Será que Silvio Santos, com sua Tele-Sena e o Baú da Felicidade, não foi o precursor desse modelo? Não estaria o “patrão” entre os primeiros a explorar o desejo de enriquecimento rápido do povo, vendendo sonhos em parcelas do tamanho suficiente para explorar até mesmo as pessoas mais pobres? Havia ali um verniz de filantropia e entretenimento familiar, mas, em essência, o jogo era o mesmo: vender esperança estatisticamente improvável para quem pouco tinha — e lucrar com isso.
Hoje o cenário se sofisticou. A sociedade do espetáculo transformou a crença cega no sucesso individual e instantâneo em norma cultural.
Influenciadores não vendem só produtos e promessas; vendem estilos de vida. Cada encenação de ganho simulado e exibido nas redes sociais reforça a ideia de que pensar, estudar, trabalhar e construir algo coletivamente são esforços ultraados. Tudo se resume à fé na sorte, na malandragem, no vantagismo e na recompensa ao menor esforço.
E não estamos mais falando de bilhetes impressos vendidos por camelôs. Agora, o capitalismo informacional converteu o vício em apostas em uma epidemia silenciosa e destrutiva. Algoritmos identificam padrões de comportamento e vulnerabilidades emocionais para maximizar o tempo e o dinheiro investido pelos usuários. O jogo do bicho parece brincadeira de criança perto da engenharia tecnológica por trás dos aplicativos de apostas atuais. Tudo é meticulosamente calculado para manter o apostador preso, iludido, endividado, viciado.

O impacto é assustador: segundo estimativas do Banco Central, os brasileiros gastaram cerca de R$30 bilhões por mês em apostas online em 2025, até agora. Isso mesmo: por mês. É uma sangria econômica que atinge majoritariamente os mais pobres, muitas vezes desempregados, ou incapazes de manter as contas em dia por mais que trabalhem, iludidos por um clique que prometia transformar suas vidas. Enquanto isso, os empresários e investidores de plataformas de apostas — e os influenciadores que as promovem — comemoram lucros obscenos, sem nenhuma vergonha na cara.
O esquema é perverso. Muitos famosos recebem seus cachês não com base nos cliques ou os, mas da forma mais perversa possível: ganham uma porcentagem do valor que os usuários perdem. A “cláusula da desgraça” recompensa diretamente o prejuízo alheio. Quanto mais perda o seguidor tem, maior o lucro da celebridade que o levou até ali. São vigaristas, sim, mas vigaristas aplaudidos, idolatrados, ovacionados como heróis populares justamente por quem parasitam e exploram.
Imagine R$30 bilhões mensais investidos em educação pública de qualidade, no fortalecimento do SUS, em bibliotecas municipais, centros culturais, parques e espaços de lazer. Por que, enquanto o país afunda em desigualdades, escolhemos alimentar o cassino digital do desespero em vez de sonhar com dignidade coletiva? Porque vivemos em uma sociedade materialista e consumista, regulada pela vigilância e pelo controle algorítmico, onde o entretenimento anestesia e a ostentação da riqueza é apresentado como sucesso e liberdade.
Ainda mais revoltante é assistir a parlamentares da I se comportando como fãs abobalhados diante dos investigados. Em vez de tratá-los como suspeitos de envolvimento em um sistema de exploração financeira, bajulam quem deveriam inquirir. Esse teatro grotesco revela a rendição da política ao espetáculo midiático e expõe o funcionamento de uma democracia neoliberal, onde a ética é esquecida e os bilhões movimentados por essas plataformas falam mais alto do que valores fundamentais à civilidade e à cidadania.
Por isso é tão importante regulamentar o uso das redes sociais, além de criminalizar e punir severamente os envolvidos em esquemas online criminosos. Não só os responsáveis por essas plataformas, mas também os influenciadores que, cientes da armadilha que divulgam, escolhem lucrar com a desgraça. A justiça precisa cobrar reparações, indenizações e, sobretudo, reverter essa lógica perversa que transforma vigaristas em ídolos nacionais.
Além da punição, há um desafio ainda maior: como transformar a mentalidade que celebra a “esperteza”? Como enfrentar a cultura do jeitinho, que faz com que tantos sonhem em ser o próximo milionário do Instagram? A resposta não está em moralismos rasos, mas em uma mudança profunda de valores sociais, que devolva ao esforço coletivo, à solidariedade e à justiça o prestígio perdido.
Enfrentar a epidemia de apostas online no Brasil exige ação política, jurídica e cultural. É preciso educar, regular, fiscalizar — mas também redefinir os ídolos que escolhemos. Enquanto celebrarmos quem lucra com o desespero alheio, continuaremos aplaudindo nossos próprios algozes. E eles, claro, seguirão nos chamando de “família” enquanto apertamos o botão que enche suas contas bancárias.
Luis Felipe Valle é professor universitário, geógrafo, mestre em Linguagens, Mídia e Arte, doutorando em Psicologia.